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Este é o 6º artigo de 23 posts da série Renegada.

Halie encarou as água do Lago Lordamere, ainda não acreditando na loucura que havia cometido. Almirante Machadinha já tinha desistido de gritar seu nome havia alguns minutos, mas ainda existia um tênue zumbido vindo da máquina – isto, ou então aquilo que ouvia era só o eco da chacina de worgens que ainda reverberava pela margem vazia do Lago.

Talvez seja minha consciência me condenando, pensou. Isto é, caso eu ainda tenha uma.

Analisou o resultado de seu impulso devastador e resolveu que já era hora de sair dali. Não havia mais worgens à vista, exceto os mortos, cujos corpos eram carregados com delicadeza pela correnteza fraca. Os que tinham conseguido escapar, no entanto, já deviam estar chamando reforços.

Ainda tinha mais tarefas a realizar. Àquela hora, imaginava que já deveria estar voltando ao Sepulcro com as insígnias dos Renegados mortos na emboscada para entregá-las a Sylvana. A despeito disso, ainda não havia encontrado o local para onde devia ir.

Cavalgou pela estrada, fugindo de lobos selvagens e worgens raivosos que se escondiam na floresta. Já estava começando a se preocupar em estar perdida quando soube que tinha chegado ao seu destino: viu carroças e equipamentos destruídos, pegando fogo em meio aos corpos dos Renegados subjugados, rodeados por worgens numa paisagem devastadora.

Aproximou-se cautelosamente dos corpos que estavam mais próximos e remexeu em suas vestes. Enquanto recuperava a insígnia dos Renegados, Halie percebeu-se imaginando qual seria a história de cada um deles. Sentiu-se triste, pensando que, em alguma época, aqueles pobres mortos-vivos tiveram algo para contar.

– Você recuperou as insígnias? – perguntou Sylvana, ansiosa, assim que Halie se aproximou o suficiente para ouvi-la.

Halie assentiu com a cabeça e as entregou. Tentou arrumar a postura e tratou de colocar no rosto uma expressão que não demonstrasse o desânimo que sentia no momento. Enquanto a Rainha examinava as insígnias, Halie olhou rapidamente na direção de Machadinha, que a observava de longe, e sentiu-se culpada. Devia ter deixado a pobre orquisa preocupada depois de seu sumiço repentino.

– Tomarei providências para que essas insígnias sejam enviadas para Cidade Baixa imediatamente – continuou Sylvana. – O escrivão vai registrar os nomes deles em nossos arquivos para que o sacrifício que fizeram não seja esquecido jamais – A Rainha voltou seu olhar para Halie de uma forma pensativa. – E por que a demora?

– Havia worgens, Senhora – respondeu a Renegada.

– Oh, vermes – exclamou Sylvana. – Nos fazem gastar nosso tempo limpando a mácula que espalham pelo mundo… Bem, e o que mais havia por lá?

– Nada além de fazendas abandonadas e plantações esquecidas – disse Halie, achando curioso o fato de que “mácula” devia ser exatamente a mesma palavra com a qual os worgens definiam a existência dos mortos-vivos. – E javalis. Há javalis.

– Não ligo para os javalis – prosseguiu a Rainha Banshee. – Mas essas fazendas… Talvez ainda haja retardatários da Aliança escondidos.

– Se lhe aprouver, Senhora, eu poderia vasculhar a área.

– Oh, você voltaria até lá? – o semblante de Sylvana iluminou-se. – Bem, isso seria de extrema ajuda. Ótimo, ótimo. Então vasculhe bem as fazendas no entorno da Miséria de Olsen e fique atenta a qualquer informação que possa nos levar até Crowley e Dentessangue. Busque e destrua todos que ficarem em seu caminho, Halie.

Halie assentiu e afastou-se sombriamente, arrastando seu corpo desfigurado ao encontro da Almirante Machadinha, que suspirou de alívio ao puxá-la para um abraço apertado. Halie desvencilhou-se meio sem jeito e deu uma risadinha fraca.

– Que susto você me deu, menina! – gritou a Almirante. – E aquela barulheira toda! Você podia estar sendo atacada, ou raptada pela matilha de Dentessangue, ou…

– … Ou eu poderia ter tomado um canhão e tentado deter as dúzias de worgens que atravessavam o Lago naquele momento – completou Halie. – É, poderia.

– Ficou doida? – Machadinha chacoalhou a cabeça em desaprovação. – Acho que ressuscitar acaba tirando de vocês, mortos-vivos, a noção do perigo. Acham que são imortais!

– E o que eu devia ter feito, Almirante? Sair correndo e deixar que todos aqueles worgens se infiltrem cada vez mais nas nossas terras? Acho que não.

– Seu gesto foi muito nobre, menina – a Almirante baixou o tom de voz. – O mundo precisa de mais guerreiros corajosos como você. Mas, ainda assim, foi um risco descomunal. Bem, imagino que você deva ter matado um grande número de worgens recém-transformados, mas muitos mais surgirão… Mas não vamos pensar por esse lado, não é? O ataque deles foi enfraquecido. Apesar de eu ainda achar que você está meio fora da casinha, bom trabalho, Halie.

– Obrigada, Almirante – disse Halie, rindo sinceramente. – Preciso ir agora.

– Oh, outro serviço para a Rainha Banshee? Bem, boa sorte, menina. E se precisar, já sabe onde pode se comunicar comigo.

Halie despediu-se e tomou a estrada novamente, fazendo agora o caminho inverso. Foi direto à Miséria de Olsen, se esgueirando pelos trechos mais fechados da floresta, onde dificilmente seria percebida. Quando não podia mais se esconder, aproximou-se das plantações tomadas pelos javalis e examinou as duas casas de madeira que as rodeavam.

Escolheu uma delas e caminhou em sua direção, mas logo mudou de ideia: logo na entrada havia um worgen que golpeava um javali. Halie mudou de direção imediatamente e analisou as condições da segunda estrutura, que era a maior delas e tinha pilhas de entulhos espalhadas por todos os lugares, a começar pela porta de entrada, quase completamente bloqueada por pedaços de madeira quebrada e caixas caídas.

Adentrou a casa silenciosamente, pisando fraco para não correr o risco de fazer ranger alguma tábua do chão. Analisou cuidadosamente os cantos empoeirados, passando os olhos por ossos envelhecidos e pedaços quebrados de todo o tipo de objeto. Revistou estantes e armários e passou a mão pelas paredes, procurando alguma falha na madeira que pudesse indicar a existência de algum esconderijo secreto.

Frustrada pelo resultado infrutífero de sua busca, Halie aceitou o fato de que precisaria investigar também a outra casa. Resignada, virou-se e deu um passo em direção à saída.

Depois disso, tudo aconteceu muito rápido.

– Veio para morrer, é? – Halie escutou uma voz grave gritar, ao mesmo tempo em que sentiu o impacto no chão atrás de si. Girou o corpo rapidamente e olhou para cima, tentando encontrar os olhos do worgen que se erguera sobre ela, enorme e furioso.

Ainda atordoada pela surpresa, Halie tentava desviar os golpes do worgen, que brandia uma pá descontroladamente em sua direção. Conseguia se arrastar pelas paredes, tentando encontrar algum objeto que pudesse servir de arma. Percebeu que era inútil tentar derrotá-lo fisicamente quando notou que tudo o que lhe atirava simplesmente batia em seu corpo e voltava sem causar nenhum impacto além de deixá-lo cada vez mais irritado.

Não é de força que preciso, pensou, tomando uma decisão desesperada. Aproveitando o fato de que o worgen era significativamente mais lento por causa de seu tamanho, Halie dava voltas no pequeno cômodo da casa, procurando deixá-lo sempre de costas, para que fosse obrigado a continuar girando.

Quando achou que era hora, reuniu toda a força de vontade de lhe sobrara e finalmente encontrou coragem para recorrer à alternativa que vinha evitando desde que fora transformada. Depois de tanto tempo, sentiu-se mais viva do que nunca ao voltar a usar a magia.

Ao ver o inimigo desabar no chão gasto da casa de madeira, Halie precisou de um momento para assimilar a situação. Já havia se conformado com a hipótese de não poder mais aproveitar os feitiços que aprendera desde muito cedo, quando ainda era humana.     Lembrou-se de todas vezes em que tentara utilizar a magia após sua ressurreição, um fracasso após o outro.

E agora isso…

            Resolveu voltar à realidade e sair dali o mais depressa possível. Já se preparava para sair correndo quando lembrou-se do que estava fazendo ali. Agachou-se sobre o corpo do worgen e tateou seus bolsos, procurando algo de valor.

De dentro do último bolso, tirou um pequeno livro de registros. Guardou-o para examiná-lo mais tarde, quando estivesse sob a proteção da Rainha Banshee, bem longe daquele lugar assustador infestado de worgens raivosos.

– Este livro documenta uma reunião recente com Ivar Dentessangue – disse Sylvana após receber o achado, folheando o livro com interesse. – O local da reunião é a Mina Elenfunda – ela balançou a cabeça levemente. – Conheço o lugar. E lá só há uma entrada. Os deixaremos encurralados e esmagados!